carta do fanboy bram stoker para walt whitman

morgana feijão
8 min readJan 19, 2021

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com o subtítulo “bram gay panic stoker”, segue abaixo uma tradução de uma carta do bram stoker de 28 (e de 24) anos para walt whitman. escrita no tal do valentine’s day. não irei decretar aqui Estes Homens Eram Gays, mas saibam que há discussões nesse sentido, e a leitura dessas cartas certamente é mais prazerosa pelo viés do “ele faz o grindr dele” (em certo momento, bram stoker faz uma minuciosa descrição de seus atributos físicos… tudo bem?).

mas mesmo que não vejamos pelo viés de uma crush, certamente estamos diante de uma crush literária. o que ainda é ótimo.

Dublin, 14 de fevereiro de 1876.

Meu caro Sr. Whitman,

Espero que você não considere uma liberdade essa carta de um completo estranho. Na verdade, quase não me sinto um estranho para você, e essa não é a primeira carta que lhe escrevo. Meu amigo Edward Dowden frequentemente me diz que você gosta de novos conhecidos ou, melhor dizendo, amigos. E é como um velho amigo que lhe envio um anexo que talvez possa interessá-lo. Quatro anos atrás, escrevi o rascunho de uma carta que pretendia lhe enviar — e ele tem descansado na minha mesa desde então — quando soube que você atendia por Sr. Whitman. O rascunho fala por si só e não precisa de comentários. O que eu queria dizer é tão verdadeiro quanto aquela luz é luz.

Os quatro anos que passaram me encheram quatro vezes mais de amor pelo seu trabalho, e posso dizer com sinceridade que sempre o tratei como a um amigo. Você sabe o tipo de crítica hostil que seu trabalho às vezes atrai aqui, e tenho lutado uma guerra perpétua com muitos de meus amigos em sua defesa. Mas fico feliz em dizer que minha postura tem feito muitos daqueles que, a princípio, escarneciam de você começarem a conhecer seu trabalho. Não foram dormentes os anos que passaram, senti e pensei e sofri muito neles, e posso dizer honestamente que em você encontrei muito prazer e muito alento — e acredito de verdade que sua escrita tão aberta e sincera não foi desperdiçada comigo ou que a impressão dela falhou em marcar minha vida e meus pensamentos. Escrevo isso francamente porque sinto que, com você, deve-se ser franco. Hoje à noite, tivemos um debate acalorado sobre sua genialidade no Fortnightly Club, em que eu tive o privilégio de falar do meu ponto de vista — acredito que com sucesso.

Não me ache atrevido por escrever essa carta. Eu só posso esperar que um dia nós nos encontremos e talvez aí eu consiga dizer o que não posso escrever. Dowden me prometeu um exemplar de sua nova edição e eu espero que você permita que eu seja sempre um dos primeiros a ler quaisquer de seus trabalhos vindouros. Sinto muito por você não ser saudável. Muitos de nós esperam poder vê-lo na Irlanda. Havíamos marcado de ter um encontro para você. Não sei se você gosta de receber cartas. Se sim, ficarei muito feliz de enviar-lhe notícias a respeito de como os homens que conheço têm pensado. Com os mais sinceros votos para sua saúde e felicidade, acredite-me,

Seu amigo,

Bram Stoker.

RASCUNHO

Dublin, Irlanda, 18 de fevereiro de 1872.

Se você é o homem que imagino que seja, ficará feliz em receber essa carta. Se não é, não me importo se vai ficar feliz ou não; apenas peço que ponha-a no fogo antes de progredir na leitura. Mas creio que você gostará dela. Não acho que haja um homem vivo, até você que está acima dos preconceitos da classe dos homens de mente pequena, que não gostaria de receber a carta de um homem mais jovem, um estranho, que vive do outro lado do mundo — um homem que vive num lugar preconceituoso quanto às verdades que você canta, e a sua maneira de cantá-las. A ideia que vem a minha mente é se há no mundo um homem que queimaria uma carta na qual tem o menor pingo de interesse sem antes lê-la. Acredito tanto que você o faria quanto que você mesmo acredita que o faria. Pode queimá-la agora e testar a si mesmo, e tudo o que eu pediria pelo tempo que gastei escrevendo essa carta, que, até onde sei, você pode usar para acender seu cachimbo ou algum outro fim mais desprezível — é que você de alguma forma me avise que minhas palavras atiçaram sua impaciência. Coloque-a no fogo, se quiser — mas se o fizer, perderá o prazer da próxima frase, o de superar um impulso que não valia a pena.

Um homem que não está certo da própria força pode tentar se encorajar com um pouco de aplauso, mas um homem que é capaz de escrever, como você escreveu, as mais sinceras palavras que já saíram dos lábios de um mortal — um homem para quem a franqueza das Confissões de Rousseau é reticente — não pode temer a própria força. Se você já chegou tão longe, pode ser que leia a carta e ao escrevê-la, sinto que estou falando com você. Se estivéssemos cara a cara, gostaria de apertar sua mão, pois acredito que gostaria de você. Gostaria de chamá-lo de camarada, e de falar com você como homens que não são poetas não costumam falar. Creio que a princípio sentiria vergonha, porque um homem não pode, num breve momento, quebrar o hábito da quietude que tem sido como uma segunda natureza a ele; mas sei que eu não teria vergonha de ser natural diante de você. Você é um homem verdadeiro, e eu gostaria de também sê-lo, e então eu estaria para você como um irmão, como um aprendiz está para seu mestre. Nesses tempos, nenhum homem se torna digno de seu nome sem esforço. Você quebrou os grilhões e suas asas estão livres. Ainda trago os meus nos ombros — mas não possuo asas. Se você for prosseguir a leitura dessa carta, devo avisá-lo de que não estou pronto para “desistir de tudo” aqui no campo das palavras. A única coisa da qual estou disposto a desistir é o preconceito — e, antes de conhecê-lo, havia começado a me desfazer dessa minha carga, mas ainda há peso aqui.

Não sei como você receberá essa carta. Não o chamei de nada ainda, pois ouvi dizer que você desgosta um pouco das formas convencionais das cartas. Estou lhe escrevendo porque você é diferente dos outros homens. Se fosse igual ao resto, eu não te escreveria de forma alguma. Dessa maneira, devo chamá-lo de Walt Whitman, ou simplesmente não chamá-lo de nada — escolhi a última opção. Não sei se lhe é estranho receber cartas de desconhecidos que não têm nem mesmo a desculpa da irmandade literária para escrever-lhe. Se for, você deve ser terrivelmente atormentado por cartas e eu lamento por ter lhe escrito. Tenho, no entanto, a desculpa de gostar de você — porque suas palavras são sua alma e mesmo que você não leia a minha carta, isso não me tira o prazer de escrevê-la. Shelley escreveu a William Godwin e eles se tornaram amigos. Eu não sou Shelley, você não é Godwin, portanto, só posso torcer para que um dia possa vê-lo face a face e talvez apertar sua mão. Se um dia isso ocorrer, será um dos maiores prazeres da minha vida.

Se você quer saber quem lhe escreve, meu nome é Abraham Stoker (Junior). Meus amigos me chamam de Bram. Moro na Rua Harcourt, nº 43, em Dublin. Sou funcionário da Coroa e ganho pouco. Tenho 24 anos. Fui campeão atlético pela Trinity College, em Dublin, ganhei algumas competições. Também fui Presidente da Sociedade Filosófica da Universidade e crítico de arte e de teatro em um jornal diário. Tenho 1,87m, peso 76kg, e costumava ter entre 1,04m e 1,06m de tórax. Sou feio, mas forte e determinado e tenho um grande calombo sobre minhas sobrancelhas. Meu maxilar é pesado e minha boca, grande, com lábios grossos — narinas sensíveis — , nariz arrebitado e cabelo liso. Sou dono de um temperamento equilibrado e uma disposição contida, tenho bastante autocontrole e sou naturalmente reservado para o mundo. Sinto prazer em deixar aqueles de quem não gosto — pessoas más ou cruéis ou bisbilhoteiras ou covardes — verem meu pior lado. Tenho inúmeros colegas e cinco ou seis amigos — estes se preocupam muito comigo.

Agora, contei a você tudo o que sei sobre mim. Conheço você pelos seus trabalhos e por sua fotografia, e, se eu sei qualquer coisa sobre você, acredito que você gostaria de saber a aparência de seu correspondente. Você é, sei disso, um fisionomista afiado. Eu mesmo acredito nesta ciência e, humildemente, pratico-a um pouco. Não me decepcionei ao ver sua fotografia — a última, especialmente. Foi assim que cheguei a você: dois anos, talvez mais, atrás, um anúncio de seus poemas chegou na revista Temple Bar. Dei uma olhada, considerei suas máximas como findas e ri de você entre meus amigos. Digo isso envergonhado, mas não arrependido, pois obtive daí uma lição para a vida — sem nem ao menos ter lido seus poemas. Mais de ano depois, ouvi dois homens na Universidade falando de você. Um deles tinha seu livro (a edição de Rossetti) e estava lendo em voz alta algumas passagens, das quais ambos riam. Escolheram apenas os trechos mais estranhos aos ouvidos britânicos e caçoaram deles. Ocorreu-me então que eu o havia julgado precipitadamente. Levei o volume para casa e li noite adentro. Desde então, devo agradecê-lo por muitas horas felizes, porque li seus poemas tarde da noite trancado no meu quarto e os li à beira-mar, onde podia olhar em volta e não ver nenhum sinal de vida humana além dos navios no mar: e com frequência me encontro assim, despertando de um devaneio, com o livro aberto diante de mim.

Eu amo poesia, e pensamentos mui generosos me levam lágrimas aos olhos, mas suas palavras e frases me levam para longe do mundo em que estou, me deslocam para uma terra ideal cercada de realidades, muito mais do que qualquer outro poema que eu já tenha lido. Ano passado, estava na praia em um dia de verão, lendo o seu prefácio de Folhas de Relva como impresso na edição de Rossetti (pois Rossetti é tudo o que eu tive até ter encomendado sua obra completa vinda da América). Um pensamento me ocorreu e o martelei por muitas horas — “os navios curtidos pelo tempo entrando em novos portos”¹, você escreveu as palavras, conhece-as mais do que eu: e para você, que canta sobre sua terra do progresso, as palavras possuem um significado que eu só posso imaginar. Mas esteja certo disso, Walt Whitman — um homem com menos da metade da sua idade, criado conservador em um país conservador e que sempre ouviu seu nome sendo depreciado por aqueles que o mencionavam, aqui sentiu seu coração pular para você, cruzando o Atlântico, sentiu sua alma dilatar com as palavras — ou, melhor, com os pensamentos.

É vão tentar citar quais dos seus pensamentos são meus favoritos — porque gosto de todos e você deve sentir que está lendo as palavras sinceras de alguém que sente com você. Veja, eu o chamei pelo seu nome. Eu fui mais honesto com você — falei mais sobre mim para você do que para qualquer outra pessoa. Você não estará com raiva de mim se tiver lido até aqui. Você não rirá de mim por escrever-lhe isso. Não foi com pouco esforço que comecei a escrever, e agora não quero parar, mas não devo cansá-lo mais. Se um dia você quiser mais, pode imaginar, pois você tem um grande coração, o quão prazeroso seria para mim escrever-lhe mais. Como é doce para um homem forte e saudável, com olhos de mulher e sonhos de criança, sentir que pode falar com um homem que pode ser, se assim desejar, pai, irmão e esposa de sua alma.

Eu não acho que você rirá, Walt Whitman, nem que me desprezará, mas, de qualquer maneira, eu o agradeço pelo amor e pela simpatia que você dispensou a mim e àqueles como eu.

¹ Tradução de Lísia Nunes. Disponível em <https://www.ufrgs.br/cdrom/whitman01/whitman01.pdf>. Acesso em: 29 out. 2020.

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