o corpo

morgana feijão
3 min readApr 13, 2024

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é difícil falar sobre o corpo.

difícil não pela sensibilidade do tópico ou coisa parecida. não me dói falar do corpo. me custa porque eu o amo, na verdade. eu amo o corpo. não sinto uma divisão de mente e matéria. sinto que só sou assim porque tenho esse corpo, esse corpo sou eu, nesse corpo está inscrita a minha personalidade. sem essa personalidade, eu não teria esse corpo. sem esse corpo, eu não teria essa personalidade.

o corpo sempre foi uma questão. de criança, as bobajadas que ouvia e me afetavam. na adolescência, então. como odiei o corpo. o corpo que me dava tudo: o nó na garganta, o coração acelerado, a comoção diante de um livro, de um filme. todos presentes do corpo, e eu o rejeitava profundamente. crescer foi aceitar os presentes do corpo. foi pensar com carinho no corpo. ele é assim, e tudo bem. não tem muito pra onde correr. não tenho desejo de modificá-lo, não de verdade: claro, sonho de olhos abertos e imagino com prazer e dor como seria se ele milagrosamente se modificasse. que fosse cada vez menor. ou que nem precisasse ser tão menor assim, só um pouquinho.

tenho um pouco de receio de amar o corpo. meu maior problema é ter medo do ridículo. uma bobagem, claro. mas o único medo real: o de olharem para mim e se divertirem às minhas custas, secretamente. que boba. que tola. que ridícula. como ela pode amar o corpo? ela não sabe que não se deve amar o corpo, qualquer corpo, claro, é fundamental que todos os corpos sejam odiados, controlados, mas especialmente este corpo? não se deve amar este corpo que faz as mais queridas amizades se contorcerem de nervosismo só de pensar em terem um corpo remotamente parecido.

não é engraçado, não é meio ridículo falar sobre isso? não vivemos brevemente um tempo em que pareceu absurdo odiar o corpo? muito, muito brevemente. corpo, sinto muito: nunca foi embora o tempo do ódio. talvez por breves instantes tenha ficado mais ameno, mais discreto, menos óbvio, mas só na superfície. agora voltamos a escancarar: é meu dever te odiar.

mas eu não consigo mais. eu odeio você, claro. delírio: seria tudo mais fácil se. as pessoas gostariam mais de mim se. eu seria — ah, que palavra sofrida —bonita, se. se não fosse esse corpo, se fosse outro, se fosse outro com todas as medidas exatas, os tamanhos certos. seria melhor. eu ainda odiaria o corpo, porque nunca seria o suficiente. mas pelo menos não seria assim.

o problema é que o corpo, que sou eu, que é minha mente, o problema é que este corpo ainda, com todo o ódio e toda a dor, segue me enchendo de presentes. o corpo deseja e é desejado. o corpo me ensina o que machuca. o corpo me ensina o que é bom no que machuca. o corpo me presenteia com um sorriso, com pés que parecem leves, com o toque, com o olhar. o corpo me presenteou com todas as minhas dúvidas. todas as vezes que eu desisti de amar o corpo, todas as vezes que o corpo continuou a me presentear. só sei o que é chorar terrivelmente por causa do corpo. só sei o que é rir até a falta de fôlego por causa do corpo. não estou dentro dele, sou ele.

nunca gostei do recorrente comentário sobre o desejo de ser apenas um conceito, uma ideia, algo que não se pode tocar, sem um corpo a ser percebido. é injusto. sinto vontade de pedir desculpas ao corpo: você me deu tudo. todos os meus presentes, até os mais dolorosos. recebi com essas mãos, as minhas. meu corpo que olha, que pressente, que teme, que anseia. preciso odiar o corpo, porque é o que se tem de fazer sobre ele. ocupa espaço demais. não cabe nas roupas de quase nenhum brechó. cheio de dobras, manchas, falhas. cheio, sempre cheio demais. preciso odiá-lo, mas não consigo mais, ou não consigo muito. tantas maneiras de odiar um corpo, tão poucas de amá-lo. talvez eu nem precise amá-lo. talvez só reconhecê-lo. meu corpo, eu disse. mas não é meu. sou eu.

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