pra você juntar

morgana feijão
5 min readMay 7, 2024

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daqui a seis dias meu melhor amigo de infância faz trinta anos. daqui a vinte e quatro dias minha melhor amiga de infância faz trinta anos. daqui a cento e dez dias minha melhor amiga de adolescência faz trinta anos. faz mil quinhentos e cinquenta e seis dias que meu melhor amigo de adolescência fez trinta anos. faz cento e oitenta e cinco dias que meu melhor amigo de puberdade fez trinta anos. faz tantos dias que. daqui a tantos dias farão. mil novecentos e noventa, e três e quatro e cinco.

eu sempre tive saudade de tudo. doença de infância. eu era criança e sentia saudades dos meus pais. quando eles morressem. íamos de carro pela estrada para sobral e eu tinha medo de acidentes e de ficar órfã e tinha saudade das duas pessoas que me pareciam tão velhas que iam na frente.

uma vez, eu estava na biblioteca da escola cabulando aula com você. e você ia fazer dezoito anos no ano seguinte. que nem eu. que nem muitos de nós. nossos aniversários diametralmente opostos. touro, escorpião. mesmo dia. mesmo ano. seis meses entre. essa história interessa a alguém além de nós? não. mas é tudo o que importa. nesse dia, eu escrevi numa folha de caderno que em breve você iria fazer dezoito anos. e nós éramos adolescentes certinhos. então falei algo sobre você poder beber em breve. falei algo sobre dirigir. os clichês da maioridade. a gente já sabia que eu ia embora. ir embora foi o meu grande evento. ir embora tão cedo. eu vivia querendo ir embora, você lembra? até a hora de realmente ter que ir. queria ter ficado mais. agora você vai fazer trinta anos daqui a seis dias. e aí depois de seis meses, eu também. meu deus. já vivemos o tempo de outra vida dos nossos quinze anos. que frio na barriga.

eu tenho vontade de contar. eu vivo contando. eu repito a cada oportunidade. eu torço para que compreendam que não é uma saudade da adolescência ou da escola ou de qualquer coisa do tipo. digo, claro que é. no limite, é isso. mas não é exatamente assim. é que você tinha que ter estado lá para entender. eu conto essa história uma vez e mais outra e outra ainda. sempre contando. era todo o amor do mundo. você tinha que ter estado lá.

tenho vontade de me corrigir. é saudade? se eu não quero voltar no tempo, é saudade ainda? me corrijo de novo. claro que é. não é mandatório da saudade o desejo de retorno. certo? eu gosto da caixa do tempo. isso está ali. intocado. aconteceu e é impossível repetir. eu imagino que eu sinta isso dessa forma porque eu fui embora. eu fui embora, é um corte. vocês continuaram, o cotidiano. não foi assim para mim. então deve ser por isso que é assim pra mim. tento me justificar. tento, à força, com marretadas, pregos, parafusos, furadeiras, canetas e lápis, reformar meu coração: você não pode ser um museu. por que eu já me achava um museu com vinte anos? vontade de rir na minha cara. por que eu já tinha saudade de tudo com quinze anos? você é maluca? tento me tornar apresentável. sorrio com sinceridade: eu também amo aqui. amo quem está aqui agora. alguém ainda quer ouvir essas coisas? acho que não.

as coisas estão tão distantes agora e vão estar mais. agora conversamos tão pouco. agora nos vemos tão pouco. agora compartilhamos a vida com outras pessoas. os detalhes. às vezes, uns com os outros, ainda. uns mais, outros menos. a proximidade física ajuda. eu sou tão dramática. estou rindo da minha cara. nós ainda conversamos. às vezes, muito. às vezes, estou junto de vocês. e aí posso abraçar vocês e pensar como é engraçado que depois de adulta as minhas amizades tiveram tão pouco contato físico. vocês ainda devem ser as pessoas que eu mais posso tocar.

tenho certeza de que estou assim porque amadeo salvatierra disse “foram se esquecendo de si mesmos, que é o que acontece quando se esquecem os amigos”. as coisas são tão óbvias. eu sou tão óbvia. alguém ainda quer saber disso?

acho que não.

eu escrevia tanto sobre nós. a minha grande obsessão. continuou sendo minha grande obsessão. respiro fundo: por favor, não me achem patética, embora seja um pouco patético, eu tento que seja um pouco bonito. é preciso entender que tudo convive. essa saudade. essa rememoração. o museu. e o agora. o que temos agora. o que tenho agora. nossas outras pessoas. nossas outras conversas. às vezes, eu lembro que escutávamos as mesmas bandas e isso me faz rir. digo. é claro que não só as mesmas bandas, as mesmas coisas. mas tínhamos tantas músicas em comum. compartilhando os fones de ouvido. revezando os fones de ouvido. cantando as mesmas músicas. ainda ouvimos algumas das mesmas coisas. não é um descolamento total. mas acho que muito menos. muito menos. as músicas são mais diferentes do que parecidas. acho isso bom. mas também acho bom quando era do outro jeito.

lembro da gente ouvindo músicas juntos na pandemia. cada um de sua casa. certo. viu? como eu sou dramática.

vocês ainda me aguentam ouvir falar? se vocês conseguirem, ainda, eu posso continuar falando.

a gente vivia num eterno clube do livro. ler os mesmos livros. a ordem de emprestá-los. engraçado como as coisas passam. eu olho e acho tudo tão bonito. até as brigas. parece impossível brigar desse jeito de novo. graças a deus. brigamos muito. alguns mais, outros menos. existe uma confiança que se forma com brigar. você viu meu pior. eu vi seu pior. e ainda estamos aqui. não precisa nunca mais ser desse jeito porque sabemos resolver as coisas de outras formas agora. mas é importante que já tenha sido horrível. talvez traumático. talvez errado. talvez construindo coisas pontudas dentro de nós que até hoje tentamos lixar. talvez já estejam aparadas, as arestas, e agora sejam outras. foi importante beijar na boca. foi importante brigar.

alguém ainda suporta ouvir essas mesmas coisas, de novo e de novo?

daqui a seis dias você faz trinta anos. eu queria viver outros quinze anos com você. uma poção mágica que me fizesse ver como seria se eu tivesse ficado mais. talvez desastroso. nos filmes, costuma ser. talvez fosse bom e a gente continuasse conversando daquele jeito. por sms. por telefonemas. eu tenho medo de ser adulta? é por isso que eu não saio da universidade? eu tenho medo de ser ridícula. desculpa sentir tanta falta. não é um desejo de voltar. é um desejo de outra coisa. aquilo, outra vez, mas agora. as coisas impossíveis. não tem problema, viu? eu gosto do que é.

eu espero que dê pra entender. ainda dá? se eu jogar todas essas palavras do jeito que sempre fiz — não é engraçado, meu deus, como pode eu continuar sendo uma repetição da figurinha que era, talvez só ligeiramente mais amável, menos terrível, menos irascível, mas ainda a mesma coisa, as palavras, sempre as palavras, tudo se resumindo a isso — você ainda vai entender?

não sei se um dia consigo parar com isso. às vezes, quero muito parar. mas isso é mentira. eu gosto das coisas como elas são agora. mas eu gosto de ter vivido o amor como vivi. como vivemos. daqui a mais quinze anos, vou sorrir dizendo: lembra na escola? lembra nas estufas? lembra dos telefonemas? lágrimas escorrendo dos meus olhos, eu vou dizer: uma vez, no meio termo, você com dezessete e eu com dezesseis, nós nos abraçamos na saída do shopping, longamente, e eu pensei: esse é o abraço mais importante da minha vida. às vezes eu lembro dele. existem outros abraços importantes. mas aquele é uma boa imagem. que saudade.

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