primeiro de novembro de dois mil e dezessete

morgana feijão
4 min readJan 10, 2018

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[aviso de conteúdo: estupro.]

não era pra ser um dia ruim.
eu ia sair com um garoto do tinder. eu já tinha saído com um monte de gente do tinder, e a maioria dos acontecimentos foi irrelevante, mas divertida, ao menos. esse menino fazia letras também, e gostava do belchior.

ele tinha dito: a gente pode se beijar no seu carro. eu disse que não ficava à vontade beijando no carro, ainda mais em um lugar aberto. ele disse que ninguém ia notar, e eu disse: o que eu acho não conta? ele riu e disse que contava sim.

[ele disse: para de sorrir, seu sorriso é muito estranho.
ele disse: para o carro aqui.]

o mais engraçado de tudo é que eu sempre vi vítimas de abuso sexual se culpando e isso me dava uma raiva enorme. eu queria segurá-las pelos ombros e dizer: você não tem culpa de nada! como seu cérebro é capaz de fazer esse caminho que te culpa por qualquer coisa? não faz nem sentido se culpar.
mas eu tenho plena consciência da minha culpa nisso tudo. alguém pode ler e pensar: é como uma roleta russa. saindo com todas essas pessoas do tinder, uma hora isso ia acontecer. e também: ah, agora você vai dizer que parou o carro e foi beijar o [rapaz? cara? agressor?] e não imaginava o que ia acontecer. ou: por que você não foi mais firme? por que você não gritou? por que você não o mandou sair de dentro do seu carro, sua idiota?

eu sei disso tudo. e talvez ninguém que leia isso seja tão cruel e aponte todos esses dedos. mas talvez seja. mas também pode ser só minha mente, que encara cada um dos meus passos naquele dia como um passo na direção do que aconteceu. inevitavelmente. porque eu [eu sou minha maior autoridade sobre mim mesma, não? não somos todos?] poderia ter feito acabar.

mas eu não fiz.

então. banco de trás do carro. vontade de chorar e vomitar. eu digo: não. ele diz: só mais um pouco. eu digo: é que aqui é ruim. ele não diz nada, mas bate no meu rosto. não com força. me assusta e meu coração aperta e eu resolvo que não vou dizer mais nada. vai passar rápido, não vai? tá tocando david bowie. eu penso: que merda, eu nunca mais vou conseguir ouvir o bowie. eu penso: o paul sheldon disse que todos os escritores são sheherazades deles mesmos, contando histórias para sobreviver a um outro dia. eu penso: será que falta muito?

[ele diz: me chupa.
eu digo: não (eu digo não? eu acho que eu disse, mas talvez tenha sido baixo demais. ou coisa da minha cabeça)
ele me empurra e eu fecho os olhos e penso — ruim. fedido. sujo. será que vai passar logo?
david bowie canta: oh i’ll be free just like that bluebird]

quando isso acaba, eu penso que tudo bem. não foi tão ruim. minha garganta está apertada e eu quero chorar, mas acabou. só que não acabou e ele entra em mim e eu digo: ai. eu digo: tá machucando. isso parece soar bem aos ouvidos dele, porque ao invés de esperar, ele sorri e entra mais fundo.

[eu penso: lazarus.
eu penso: morrer, mas não exatamente.]

existe algo muito particular sobre alguém arrancar algo de você. tem uma coisa sua. ela está dentro de você. você pode entregá-la a outras pessoas algumas vezes, e outras pessoas a aceitam, mas sabem que é seu. é diferente quando é arrancado. uma mão, entrando em suas entranhas, segurando essa coisa, e a tirando de lá, sem suavidade, sem pensar. apenas porque pode.

[eu penso: morrer.
mas não exatamente.]

ele diz: me leva na rodoviária.
eu fico em silêncio e me visto. o meu corpo se torna estranho, nojento, suado. começo a dirigir, e meus olhos não focam em nada específico. o david bowie canta something happened on the day he died. eu paro o carro. ele desce. eu dirijo até o shopping mais próximo. eu penso: não posso ir pra casa. eu penso: não posso ir pra lugar nenhum. eu penso: queria arrancar cada centímetro da minha pele.

eu me sento na livraria depois de pegar misery. paul sheldon disse que o grande problema dos escritores é se lembrarem das coisas. contar a história de cada uma das cicatrizes. eu releio essa parte várias vezes, até pegar meu celular e mandar mensagens para amigos. eu quero que eles me provem errada. eu quero que eles silenciem a minha voz na minha mente que me diz: isso foi culpa sua. você devia ter visto isso vindo. você sabia que isso ia acontecer uma hora. você é muito burra, meu deus, como você pode ser tão burra.

eles dizem: não foi sua culpa.
eu penso: é porque vocês não sabem como foi.
eu digo: é verdade. obrigada.

morrer, mas não exatamente.

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Written by morgana feijão

só penso nas mesmas coisas obsessivamente

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