ranhuras

morgana feijão
4 min readJun 28, 2024

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na casa de cibele, a televisão estava sempre disponível. uma maravilha isso, a tarde inteira com os canais e o controle e a escolha. cibele era sempre muito generosa e dizia que ela podia decidir, cibele nem assistia tanta televisão assim, a mãe não gostava, mas visitas podem tudo. júlia se ressentia um pouco dessa ideia, mas não nesse caso. quando você é a visita, é bom poder tudo.

cibele era péssima na escola. os pais gastavam dinheiro a mais com a contratação de professores particulares. professores mais particulares ainda?, júlia se admirava. alguns eram apenas pessoas do terceiro ano, para as matérias que o pai de cibele achava que não valia a pena a ajuda profissional. para as outras, universitários, gente seríssima. ou ao menos era assim que cibele relatava: o renato, que dava aulas de biologia, a testa franzida, os lábios apertados e um cheiro doce e engraçado impregnado nas roupas. cibele falava muito de renato ao telefone. júlia revirava os olhos. o telefone de cibele era sem fio, então conseguia imaginar a amiga andando pelo próprio quarto, sentando brevemente na cama encostada na janela, levantando outra vez, mexendo em algo na penteadeira. júlia falava baixo no telefone, com fio, na sala, e a mãe costurando no sofá.

cibele gostava de usar gloss cor de rosa com cheiro de chiclete. cheiro do pior dos falsos sabores, tutti-frutti. júlia era absolutamente contra tutti-frutti. odiava chicletes, pirulitos e picolés desse — desenhando aspas no ar — sabor. cibele dava muita risada, balançando o rosto, achava muita graça dos ímpetos de ódio contra coisas banais da amiga. júlia sorria satisfeita consigo mesma e esticava os dedos para tirar os fiozinhos de cabelo de cibele que grudaram na boca de chiclete.

cibele tinha ganhado dos pais o cd do rouge, aquele com glitter na capa. levou na escola para mostrar para júlia, que sinceramente preferia o do só pra contrariar, mas para não contrariar não comentou nada. cibele não mostrou o cd apenas para júlia, claro, as meninas todas ficaram ao redor de sua carteira e quando o professor de geografia chegou teve que barrar uma pequena rebelião em homenagem ao diego que vinha virando a esquina.

um dia, a mãe de júlia reclamou que todas as suas frases começavam com cibele e júlia prometeu que nunca mais em sua vida inteira iria comentar nada, nada com a mãe. na falta de uma porta de quarto para bater, foi bater na porta do quarto de cibele.

um dia, indo dormir na casa de cibele, na cama encostada na janela, a lua enorme parecendo estar lá dentro com elas, júlia ouviu cibele sussurrar, extasiada e apavorada, que renato a tinha beijado. agora ela não era mais boca virgem. júlia sentiu ânsia de vômito e mãos geladas. não era meio nojento?; não, júlia, não é, a voz de cibele veio alta e na defensiva. júlia se assustou, nem tinha percebido que as palavras cruzaram a fronteira dos dentes. a boca de cibele, não mais virgem, estava torcida. júlia devia parar de falar e se virar para dormir, mas agora já estava irritada também, e não era banal: ele não consegue beijar ninguém na faculdade?, foi mordaz além da conta. a boca não mais virgem de cibele se abriu em indignação. a boca não mais virgem de cibele se moveu sem emitir som algum. júlia quis socar a boca não mais virgem de cibele e também a boca que jamais deveria ter deixado de ser virgem de renato e também a própria boca estupidamente virgem que agora não calava e as palavras que diziam que cibele era uma boba e uma iludida e que renato era patético e ridículo e que os pais de cibele iriam deixá-la de castigo para sempre se descobrissem. bichos de bocas imensas e dentes pontiagudos roíam as paredes da barriga de júlia e as paredes do seu cérebro e honestamente todas, todas as paredes possíveis e imagináveis, até não sobrar parede alguma, até não sobrar nada além do murmúrio repetitivo e irado de júlia e a boca não mais virgem de cibele aberta e os olhos arregalados de cibele e as lágrimas de cibele caindo no travesseiro da asquerosa cor artificial de tutti-frutti.

júlia se perguntou se a virgindade da boca só funcionava com beijos, ou se sua boca também deixava de ser virgem quando feria alguém pela primeira vez. júlia se perguntou se as notas de cibele estavam melhores, se ela estava indo bem nas provas finais, espiando de rabo de olho a figura de cibele debruçada sobre a mesa, com a mão espalmada em horror na testa. júlia se perguntou se um dia o silêncio poderia ser só isso, só silêncio, e não uma solidificação do ar, um engulho eterno na garganta. júlia se perguntou um porção de coisas que agora rodopiavam sem sair do lugar, sem ouvido algum em que pudessem se depositar. júlia se perguntou se um coração que doía o dia inteiro era também um coração não mais virgem.

um dia, na saída da escola, júlia observou cibele corada e de boca não virgem e brilhosa andar de passos rápidos até um cara com expressão estúpida, que colocou seu braço estúpido em torno dos ombros dela, e que andou estupidamente ao seu lado até dobrarem na esquina estúpida da escola.

um dia, júlia foi até a banca de revistas e comprou o gloss rosa chiclete com o dinheiro que deveria ser do lanche, com seu cheiro enjoativo, com sua cor falsa, com aquele brilho enganoso. passou na ponta do dedo, e lambeu.

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