trinta, sessenta e quatro

morgana feijão
5 min readApr 23, 2024

--

todas as vezes que tentou ter um gato, o marido não deixou.

não deixar era a forma suavizada que irene utilizava. ele matava os gatos ou os tirava de casa, jogando-os de volta na rua. essas crueldades que ela gostaria de pensar como pequenas. os gatos. os sete filhos. os clientes do armazém.

irene tinha um baú com livros da biblioteca das moças. tirou o nome da caçula de lá. a caçula. não era tão bonita quanto a irmã mais velha. os outros cinco eram rapazes. um deles o mais bonito também. a mais velha, o rapaz bonito: seus rostos pareciam com o dela. pobre da caçula. pelo menos tinha cabeça, se consolava irene. a única que estudava. a única que iria entrar na universidade. dizia para a caçula que beleza não era tudo, mas em segredo se envaidecia da filha que era bonita, a que todos queriam conquistar.

irene às vezes tinha ânsia de intervir. quando via o marido com o cinto. para a mais velha: ela não é namoradeira, os rapazes que vêm atrás dela porque querem, não por serem chamados. a caçula apanhava também, preventivamente. os meninos todos, por serem meninos. observar calada os filhos sendo maltratados. lembrar que não eram só dela, os filhos. lembrar disso e dobrar o tamanho da raiva.

irene tinha uma máquina de costura. tinha um telefone em casa. e uma daquelas mesinhas especiais para receber o telefone, a cadeira acoplada. tinha uma horta no quintal. e aqueles livros no baú. por baixo da biblioteca das moças: os três mosqueteiros. o conde de monte cristo. amizade, vingança.

irene fumava. muito. o dia inteiro envolvida por fumaça. velha, ainda fumava. tinha uma mania: acendia o cigarro e com a ponta acesa, fazia furinhos no plástico que envolvia o maço.

ainda se surpreendia com a crueldade do marido. animais, pessoas. um tirania indócil e sem fim. gritava e batia nos cachorros. ela dizia que quando morressem, não iria tentar mais ter bicho nenhum. não valia a pena. mas se um gato cruzava o portão, estendia os dedos e dizia “vem cá, xanim”.

preciso confessar: queria mais detalhes. queria vê-la jovem. queria rever o quadro na parede, a foto dela com cabelos pretíssimos. queria ter retido na memória um pouco mais. tenho lacunas. tento preenchê-las. não sei o que invento. preste atenção:

irene velha sempre tinha nos bolsos: dez reais e balas de caramelo para a neta que chegava da capital enjoada da viagem de horas. ela também tinha a habilidade de fazer o melhor sorvete de maracujá. ela também tinha uma bengala. depois muletas. depois a cadeira de rodas. ela também tinha uma ferida na perna que não cicatrizava. ela também tinha cabelos de nuvem. ela também tinha perfume de lavanda. ela também tinha o hábito de mastigar o nada. ela também tinha um monte de manchinhas nas mãos. ela também tinha um baú cheio de livros da biblioteca das moças.

vovó, por que eu tenho que viver no descompasso do tempo? por que na infância todos os adultos parecem velhos, tão velhos, por que quando descobrimos que eles não eram assim tão velhos já é tarde demais? eu queria ter sabido antes. eu devia ter sabido com dezenove anos. já era idade para saber. eu não soube.

irene tinha um marido dado a pequenos gestos de tiranias. e também gestos de amor e de cuidado. tudo nas mesmas mãos. as doenças todas piorando e as mãos que bateram tanto, tanto nos filhos, cuidando. trocando curativos. preparando sopas. trocando fraldas. religiosamente.

o dia em que você morreu.

o marido e a filha da caçula, sozinhos no quarto enquanto todos os outros se ocupavam das burocracias. ele pegou nos cabelos de algodão. a filha da caçula ainda não sabia das crueldades, conhecia só os gestos de carinho. ele disse: ela é linda. eu ouvi. o último momento com você, irene.

eu queria ver você de novo.

com a bengala, as muletas, a cadeira de rodas. os conjuntinhos de bermudas e camisas de botão. de frente para a penteadeira, ajeitando os cabelos. pedindo para que eu passasse o perfume em você. eu tinha que derramar nas mãos e esfregar no seu corpo. você cheirava minhas mãos depois.

eu não lembro qual foi a última vez em que eu vi você, vovó, antes de ver você morrendo e então morta. não lembro como nem quando foi. lembro da sua semana na uti. de chegar na sexta. você não abria os olhos. você morreu no sábado. eu que contei para a sua filha.

irene velha dizia muito que queria morrer logo. não aguentava mais as dores todas, e feridas, e a sopa. não a deixavam comer açúcar. uma vez a filha da caçula a acobertou enquanto ela enfiava colheres e colheres de açúcar puro na boca.

um ano antes de você morrer, meu tio morreu e você passou o tempo todo sentada do lado do caixão, lamentando a falta de ordenamento das coisas. os filhos não podem morrer antes dos pais. não é justo, não é certo, essa devia ser a única garantia para uma mãe. a única promessa cumprida pela natureza, pelo universo, por deus: mãe, você não vai ver o seu filho morto. não é assim. eu lembro de:

irene velando o corpo do filho de trinta e seis anos. o verdadeiro caçula, o caçula absoluto, não só a filha caçula. o mais novo de todos. o que deveria viver mais. ela segura nas bordas do caixão e ergue o corpo da cadeira de rodas. é preciso muito amor, pensa a filha da caçula. irene chora. a filha da caçula chora. a filha do caçula desmaia de dor.

foi isso, vovó?

todos os domingos, a caçula, que agora mora em outra capital, liga para irene e o marido. depois só para o marido de irene. depois para ninguém. domingos sem ligações. antes desses domingos, a filha da caçula falava com irene ao telefone. mas irene ouvia mal. respostas desencontradas das perguntas.

queria inventar uma vez como a última vez. a vez em que estive aí, e era hora de ir embora, e eu beijei seu rosto não sei quantas vezes, beijos estalados na sua bochecha. eu não sei quantos beijos foram. mas você sabia. você contou. você segurou meu rosto e repetiu todos os beijos na minha bochecha.

vovó, quando eu acordava na sua casa você cheirava minha cabeça e me dizia que eu tinha dormido em um vidro de perfume.

irene gostava de ver novelas e de ouvir música. o marido da caçula colocava nico fidenco para tocar. todos sorriam. a casa de Irene.

eu queria saber mais. não deu tempo.

--

--