(uma nota pro seu futuro)

morgana feijão
4 min readFeb 7, 2021

--

queria te contar uma história sobre coisas bonitas, sobre a vontade de fazer coisas bonitas — ou melhor, talvez, sobre a vontade de compartilhá-las, que é quase como fazê-las, afinal. queria te contar essa história do futuro, quando eu pudesse olhar para trás e falar sobre isso; contar pra ti que tinha um menino e ele gostava de filmes, e o cinema parecia o maior e mais mágico lugar da cidade interiorana do estado com o maior número delas, falar sobre a sensação de entrar na sala pela primeira vez: a escuridão e as poltronas, o carpete que fazia a garganta de alguns (a minha, certamente) coçar; sobre comprar pipoca antes de entrar e ter que se controlar para não comê-la inteira do lado de fora. sobre o maior clichê de todos: sair do lugar onde se estava, desligar-se do mundo ao redor e só assistir a um filme. só isso. só ficar perdido entre imagens e sons, movimentos e cortes na tela; talvez não tão flutuante assim, inclinando-se para a pessoa do lado para sussurrar, exasperado essa cena!, fazendo anotações mentais sobre o que falar do lado de fora, no mundo real. ah! ah, não, não, desculpa, eu estou me adiantando, ainda estamos falando de um menino, ainda estamos falando da pura emoção da diversão, acima de qualquer outra, essa janela nos afazer escolares diários, da rotina em casa, da mesmice, esse espacinho feito de sonho e de beleza-que-ainda-não-chama-beleza, esse lugar em que se era permitido ser outra coisa, ver outra coisa, descansar um pouco a vista da natureza que descansava em plantações de café. o menino pensa sobre o que vê e depois passa os dias juntando as mãos em quadrados e retângulos, fingindo enquadrar a paisagem de casa, a cama dos pais, a luz que entrava pela janela da cozinha. sim, sim, essa é a história que eu queria te contar — fazer coisas bonitas e compartilhá-las, e colocar coisas bonitas no coração dos outros. e aí, aí, um dia sai no jornal que aquele pequeno e sagrado lugar não vai mais existir. que vai ser fechado. e o menino muda para uma cidade em que pode ir a cinemas sempre que quiser, mas a realidade é que não importa quantas vezes ele entre em qualquer outra sala, nem que seja a melhor sala de cinema de todas, a mais confortável, sem nenhuma poeira no carpete e com a melhor pipoca à venda; a verdade é que nenhuma é aquela, aquela primeira — a gente só vive uma vez, não é? a gente só experimenta a vida quando se é criança, o resto do tempo é imitação — e era aquela que ele queria ter de volta, e era aquela que ele queria que existisse porque o ponto da beleza — e agora a beleza tem nome e ele sabe que o é, e agora os espaços de sonho quase que se explicam diante de seus olhos atentos e ele deixou de ser a pessoa que ouvia o sussurro dos adultos dentro da sala, comentando sobre algo, para se tornar aquele que falaria “vê? isso não podia ser num livro, não desmerecendo a literatura, mas é movimento, você tem que ver pra poder entender”, ele não precisa mais usar as mãos para delimitar as cenas, embora as use, ainda, porque é bom, porque aquece o peito, porque ele lembra — era ser compartilhada, fazer a beleza e mostrá-la ao mundo, ou ajudá-la a aparecer. e aí, entende? entende o que eu quero dizer? é que a gente vive muito sozinho, mas tem coisas pelas quais não vale a pena passar sozinho e uma dessas coisas é o amor, no sentido mais puro da coisa, o amor por algo que te empolga, eu tô te contando isso porque… porque a gente tá aqui hoje, anos e anos depois desse menino ter entrado pela primeira vez no cinema, anos e anos depois de ele ter saído da cidadezinha e entrado em outros tantos cinemas e anos e anos depois de ele ter vivido uma vida e construído coisas e tentado sentir o que sentia na infância, resgatar aquela sensação e aí — ah, que tolice a minha, é que tu vai entrar na primeira sessão de cinema da sua vida e é só uma menininha, e nem sabe ainda o que é beleza além de uma sensação de falta de ar no peito, e a gente vai ver nosso primeiro filme juntas e é porque, é porque esse menino cresceu e a única coisa que ele queria fazer era reabrir esse cinema. era só isso. ele só queria que você pudesse se maravilhar como ele um dia se maravilhou. e eu sei que tu não tem idade ainda pra entender, mas vai ter e vai lembrar — achar, construir, sonhar coisas bonitas e compartilhá-las, essa é a maior grandeza de todas.

--

--