viver com uma assombração

morgana feijão
3 min readFeb 15, 2024

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viver com uma assombração é mais ou menos assim: você acorda, os olhos borrados de sono, e você se depara, na penumbra, com o rosto que gostaria de, mas não vai, esquecer. então você esfrega os olhos, aceita, levanta, toma café, resolve estudar, ler alguma coisa, pega um caderno, abre em uma página qualquer, você raramente segue a ordem, e lá está, na página, a letra que você também gostaria de esquecer, tão diferente da sua. arrancar a página é um gesto bobo e sem sentido, mas você arranca mesmo assim, arranca, amassa, joga no lixo do banheiro, especialmente o do banheiro, claro, que é onde a caligrafia fina, inclinada, deve ficar. viver com uma assombração é a qualquer momento a luz do sol bater nas árvores de um jeito tão bonito e que você gosta tanto, e a luz do sol e as árvores têm essa constância, então não é só mais uma vez que você verá esse verde: você verá esse verde, desse jeito que se altera apenas em sutileza, afinal, sol e árvores são constantes e não estáticos, e aí você vai ouvir a sua própria voz, assombrada, dizendo ao fantasma para olhar para o sol, a luz, o verde que você gosta tanto que quer que ele goste também. viver com uma assombração é tentar evitar, sempre que possível, o canto do olho. é sabido, é fato, todo mundo conhece essa verdade: os fantasmas habitam o olhar de soslaio. é preciso olhar tudo diretamente, as luzes, os pássaros, as árvores, sob o olhar direto as coisas são o que são, são elas e não a lembrança delas. olhe mais uma vez para esse mesmo pássaro. olhe mais uma vez para esse mesmo parque. olhe mais uma vez para esse corredor específico do supermercado. olhe de novo e de novo e se lembre que esse é o real. o problema de viver com uma assombração é um problema de névoa, digamos. sob ou sobre o real, uma camada que está ali, opaca, e pássaro, parque e corredor de limpeza são o que são e também são o que foram, outro momento, com o fantasma. viver com uma assombração é sempre tentar não viver com a assombração, depois pensar que se você aceitar a ausência do fantasma, ele irá embora. afinal, para que assombrar quem está resignado? falta a parte divertida. o problema de viver com uma assombração é que às vezes os fantasmas não se divertem. eles só estão. viver com uma assombração é um dia, muito tempo depois, achar que o fantasma finalmente foi embora, dos cantos e de você, e virar uma esquina e se deparar com, diretamente sob a luz do sol, piscar os olhos e vê-lo desaparecer. viver com uma assombração é mais ou menos assim: você acorda, os olhos borrados de sono, e percebe que não adianta fechar a caixa, a gaveta, as possibilidades de contato; não adianta rasgar e queimar fotos, não adianta gritar dentro do travesseiro, não adianta não olhar, não adianta tapar os ouvidos, o fantasma faz parte de você. viver com uma assombração é saber que não inventaram ainda solução para silenciar e desiludir o próprio pensamento. viver com uma assombração é notar, gosto amargo na boca, que não é que o fantasma faz parte de você. é que ele também é você.

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